dimanche 23 mars 2008

Provocaçao


A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado pelo chão.

A
segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.

Foram
lhe provocando por toda a vida.

Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas lhe tiraram a roça.

Na
cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.

Queria
um emprego, conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, entrando em fila. E a ajuda não ajudava.

Estavam
lhe provocando.

Gostava da
roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.

Ouvira
falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.

Terra era o que não faltava.

Passou
anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. não estava mais disposto a aceitar provocação.

ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.

Na
décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:

-
Violência, não!

Luís Fernando Veríssimo


K.


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